por Vera Olinda Sena*
O povo Ashaninka do rio Amônia inaugurou no dia 7 de julho passado, em frente à sede do município de Marechal Thaumaturgo, a Escola Yorenka Ãtame, um espaço educativo, cultural e ambiental destinado a promover a troca de saberes, o diálogo intercultural e a formação de jovens e adultos da floresta numa nova perspectiva de aprendizagem. Na inauguração, mais de uma centena de pessoas das terras indígenas circunvizinhas, da Reserva Extrativista do Alto Juruá, do Parque Nacional da Serra do Divisor e das cidades de Marechal Thaumaturgo, Cruzeiro do Sul, Tarauacá, Rio Branco, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, além de representantes de países como Irlanda, Canadá e Austrália, estiveram presentes, vendo, ouvindo e falando sobre essa grande novidade da floresta, confluindo a força das diferenças em uma convivência interativa.
A Yorenka Ãtame é um projeto antigo dos Ashaninka. Nasceu desde as experiências que estão dando certo na comunidade APIWTXA do rio Amônia para a gestão dos recursos naturais de sua terra indígena. Essas experiências valorizam fortemente as culturas, as línguas indígenas e o jeito de viver de cada povo da floresta para proteger o meio ambiente e criar alternativas econômicas e socioculturais sustentáveis. O que certamente lhes obriga a refletir sobre essa complexidade e enfrentar os conflitos, as tensões, os problemas e suas soluções. E isto as lideranças Ashaninka fazem muito bem! Por isso, resolveram estender os trabalhos que vêm realizando na sua comunidade para toda a população do vale do Alto Juruá acreano.
Nas palavras de Francisco Pinhanta, assessor especial de assuntos indígenas do governo do estado, a “Yorenka Ãtame significa muito para os Ashaninka. Nem dá para a gente expressar em uma situação desta a sua tradução correta, porque o sentido é muito profundo e precisa de muito tempo para entender o seu significado. Yorenka é saber, é ciência, é conhecimento. Isso é guiado pelos espíritos da floresta, os mistérios e os ensinamentos que aprendemos conversando, aconselhando, respeitando os mais velhos e a natureza e, principalmente, fazendo trabalhos práticos”.
Os dias que antecederam a inauguração foram de muitas rodas de conversações. Um grupo de Ashaninka formado por antigas lideranças, como o seu Antonio Piyãko e o Cláudio, bem como pelos mais jovens, como Benki Piyãko, Isaac Totto, Francisco, Otxe, Komãyari, Wingo, Moisés, Wewito e ainda por mim e os antropólogos Cloude Correia, Mariana Pantoja e Hamilton, que ficamos muito satisfeitos e honrados pelo convite para estarmos ali participando daquelas conversas importantes.
Organizamos uma chuva de idéias sobre o sentido daquele espaço, pensando juntos como ele deverá, de fato, se constituir. Como deverá funcionar? Quem deverá ocupá-lo? E o que deverá produzir? Tomara ser fácil para o leitor imaginar a riqueza destas questões e a solidez da interculturalidade: um grupo de gente debatendo, em duas línguas, as potencialidades daquele espaço criado, que se articula com os enormes problemas e possibilidades de soluções para renovar o ser e o fazer naquela importante região acreana.
Na intensa semana da inauguração, foi muito bacana ver e ouvir o Benki, principal articulador da Yorenka Ãtame, coordenando uma equipe de vinte e seis jovens não-indígenas da sede do município de Thaumaturgo, que já estão envolvidos nas atividades práticas de manejo. Em agosto próximo, todos eles estarão participando de uma oficina de coleta de sementes, ministradas também pelo Benki. Conversamos com alguns desses jovens, que demonstraram enorme gratidão pelo que estavam aprendendo, especialmente pelo novo olhar de valorização da floresta, de seus povos indígenas e populações tradicionais. “Tudo como sendo parte de um todo”, como disse a Naiana, uma dessas jovens de Thaumaturgo.
Também foi valioso conversar com alguns moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá e perceber que eles ainda estão motivados a refazer seus projetos. Em vários momentos, colocaram que acham oportuno criar situações para que alguns de seus moradores, freqüentando a Yorenka Ãtame, possam reavivar a importância da ocupação da Reserva a partir de uma lógica mais coletiva, superando a lógica da propriedade privada. Muitos falaram da necessidade de se debater sobre o valor dos conhecimentos tradicionais, de retomar a luta pelos direitos frente à crise política e de lideranças que, hoje, parece tomar conta da maioria de seus moradores. Não foram poucas as falas públicas recuperando a luta pela criação da Reserva, avaliando o momento atual e a importância de pensar o futuro, articulando educação e participação com a proteção da floresta e de suas águas.
As conversas foram regadas à caiçuma, feita, com primor, pela Goya e a Derléia Ashaninka. Também tomamos o kamarãpe, ou cipó da ayahuasca, ouvindo cantorias indígenas dos Ashaninka, Arara, Kaxinawá, Kontanawa e Jaminawa-Arara, que nos trouxeram muita inspiração e ensinamentos. Dessas conversas, gostaríamos mesmo de mostrar todo o texto bruto, para que o sentimento, o falar com o coração, transparecesse nesta escritura. Mas isso não é possível, porque não temos todo esse espaço nesta coluna e pela ausência da veia poética no sangue. Por isso, daqui para frente, apresentamos apenas fragmentos de discursos, que só podem ser amorosos, de tão eloqüentes, sinceros e comprometidos. São discursos das lideranças Ashaninka e do governador Binho Marques. Apreciem sem moderação!
Francisco Pinhanta
“A Yorenka Ãtame não veio para competir nem tomar lugar de nenhuma outra escola. Está sendo hoje criada para inaugurar um projeto de sustentabilidade para esta região. Este projeto tem por base a experiência que a APIWTXA desenvolve em gestão ambiental na nossa terra indígena. Na aldeia fazemos safs, manejos de recursos naturais, artes e ofícios, apicultura, piscicultura, repovoamento de quelônios, palmeiras e palheiras, proteção da fronteira, artesanato etc. Isto quer dizer que não é a lógica de ser mais uma escola, mas um espaço que trata os saberes da floresta como exemplos de confiança e resistência.
A urgência do povo Ashaninka é envolver mais pessoas para refletir sobre a importância de proteger a biodiversidade e a sociodiversidade de nossa rica região do Alto Juruá, de refletir sobre o prejuízo que muitas vezes os conhecimentos de fora trazem para as populações locais. Temos que dialogar com outros conhecimentos, mas antes, temos que valorizar os conhecimentos tradicionais dos diversos povos de nossa região.
Estamos fortalecendo, na prática, uma aliança que é nossa. Este espaço vai funcionar respeitando e promovendo a participação e a democracia. Nos momentos de discussão, os parentes desta região, as lideranças de seringueiros, todos, enfim, vão ser chamados para discutir algumas questões importantes que passam pela gestão dos recursos naturais desta imensa região de grande biodiversidade e sociodiversidade”.
Lideranças Ashaninka na inauguração da Escola Saberes da Floresta
Moisés Piyãko
“Este espaço é para promover encontros, juntar conhecimentos, fazer troca de saberes, fazer troca de experiências e reunir pessoas com suas culturas e essa diversidade toda. Para pensarmos juntos um projeto de desenvolvimento sustentável para nossa região. Trazer para dentro deste espaço as formas tradicionais de ensino, com conversas, conselhos, decisões que temos que tomar juntos. Trazer os mais velhos para cá para apoiar e ensinar jovens e adultos de todas as nossas comunidades”.
Isaac Totto
“A Escola Yorenka Ãtame vai promover um espaço de debate para a ação. Quem passar por aqui vai se preparar para a ação. Aqui é um espaço para práticas sustentáveis. Prática e reflexão vão andar juntas.
O espírito desta escola é a gente compartilhar nossos conhecimentos com os nossos vizinhos índios e brancos. E o que eles têm a nos oferecer e que possam também compartilhar com nosso povo. Este é o verdadeiro espírito da coisa. Se a gente mantiver este espírito, este espaço vai fluir. Vamos atingir nosso objetivo de viver em harmonia com a natureza. Este é nosso grande alvo. Viver bem! Nosso alvo é a vida do ser humano e a vida do planeta. E como vamos garantir isso? Podemos criar gado, criar peixe, criar galinha, podemos plantar arroz, podemos criar e plantar qualquer tipo de coisa que venha nos beneficiar, mas fazendo isso, qual é a agressão que estamos causando à natureza? Este é o desafio deste espaço. Como vamos nos organizar para que se tenha tudo isso, mas que o rico seja a permanência da diversidade biológica e nossa rica diversidade sociocultural”.
Governador Binho Marques
“Estamos aqui com muita alegria inaugurando um ambiente de formação, um ambiente que é importante para este novo momento que estamos vivendo. E que depois desta trajetória, que nós compartilhamos a vida toda, vamos dar um passo fundamental para que o desenvolvimento sustentável, que a gente sempre sonhou, possa efetivamente acontecer.
Quero dizer que, apesar do seu Antonio Piyãko está triste com as invasões patrocinadas por madeireiros peruanos e com os problemas ambientais do entorno, eu quero dizer ao seu Antonio que estamos juntos com ele. E juntos com os amigos que apoiaram a realização e a concretização deste empreendimento. Quero agradecer a todos vocês que vieram participar deste evento e dizer que este momento é importante para a gente renovar nossas esperanças e colocar desafios mais significativos para nossas vidas.
Meu sentimento é de alegria com a vitória e a resistência do povo Ashaninka. É um momento de alegria, mas não de euforia. Seria de euforia se estivéssemos com esta iniciativa espalhada por todo o Acre e por toda a Amazônia, mas essa nossa alegria tem que ser grande o suficiente para que possa contagiar todos os povos desta região do Alto Juruá e fortalecer ainda mais a nossa união. Há vinte anos atrás a gente cantava o hino do seringueiro, festejando a criação das reservas extrativistas, a consolidação das terras indígenas, como se fosse nosso ato último para que entrássemos na redenção, na alegria eterna. Hoje em dia, nós sabemos que ainda temos muita luta pela frente. Hoje, comemoramos uma vitória que foi construir este espaço com a parceria de muita gente de dentro e de fora do estado. E que só foi possível construí-lo também graças a um povo altivo, criativo, guerreiro e feliz, como os nossos parentes Ashaninka. Então, este momento está repleto de significados e será mais significativo se for um momento de passagem de uma história para outra nova história.
Temos uma trajetória grande pela frente, diferente da que tivemos para trás em que foi sacrificado Chico Mendes, Hivair Higino, Wilson Pinheiro e tantos outros.
Tenho certeza que este espaço vai ser um ambiente que vai formar a substancia da luta que nos teremos pela frente. A nossa luta agora depende de muito conhecimento e formação.
Quero dizer que estou de corpo e alma nessa nova luta. Juntos, precisamos encontrar o nosso caminho e levantar a nossa bandeira. Não basta dizer só que nossa bandeira é contra o desmatamento, temos que encontrar uma alternativa de vida e sobrevivência para nossos povos, para todos os índios, colonos, seringueiros e ribeiros para que preservem as nossas florestas. Mas esta não é uma trajetória fácil. Este é um momento de esperança no futuro, que talvez só a sabedoria dos povos indígenas, como a dos Ashaninka, Kaxinawá, Arara, Jaminawa-Arara, Poyanawa, Nukini, Katukina, Yawanawá e outros, possam nos ajudar a encontrar um novo e promissor caminho.
Com isso, quero dizer que, como representante do Governo da Floresta, o César Messias como vice-governador e os demais secretários aqui presentes, que estamos aqui para aprender também e assim construir um novo pacto para uma vida melhor e mais feliz para todos. Então meus amigos, vamos renovar nossas esperanças e fazer com que este ambiente possa ser produtivo e se espalhar por todo o Acre, chegar ao Amazonas, desaguar no mar e construir um novo modelo de civilização”.
Francisco Pinhanta, vice-governador César Messias, Governador Binho Marques, seu Antôno Piãko e Moisés Ashaninka, na inauguração da Yorenka Ãtame
Luiz Paulo Montenegro
“Hoje os Ashaninka têm uma noção exata da sua cultura e querem mantê-la ao mesmo tempo em que utilizam o que aprenderam em contato com os não índios. Eles têm a percepção de que não adianta manter a sua terra preservada, se os arredores estiverem degradados. O rio Amônia nasce no Peru e é um rio essencial para a sobrevivência de qualquer comunidade na Amazônia. A idéia da escola é fundir o conhecimento que eles têm da floresta, das plantas, das sementes, das ervas medicinais, com o conhecimento ambiental, da ecologia, biologia, zoologia, e com isso ministrar cursos de formação técnica, de manejo sustentável”, declarou Luiz Paulo, um dos mantenedores da Escola Yorenka Ãtame, no blog da APIWTXA. Leia mais sobre esse assunto e as invasões de madeireiros peruanos na terra Ashaninka, no Parque Nacional da Serra do Divisor e, agora mais recentemente, na Resex Alto Juruá no seguinte endereço: http://apiwtxa.blogspot.com/.
Benki Piyãko
“Os Ashaninka sabem que o valor dos conhecimentos tradicionais também é muito forte entre os outros povos indígenas e não indígenas de nossa grande e rica floresta. Por isso, vamos valorizar e compartilhar estes conhecimentos com os seringueiros, os ribeirinhos e os jovens de Marechal Thaumaturgo.
Nossa preocupação é dar instrumentos para a juventude se preparar para os desafios ambientais e socais do futuro. Como a juventude vai enfrentar os problemas que estão aí e que estão ficando cada vez mais graves? Qual a reflexão que fazemos sobre a região do Alto Juruá, o Acre, o Brasil e o mundo? Nossa juventude está preparada? Está refletindo sobre os nossos problemas?”
Finalizando o papo
O papo, na verdade, começa aqui com o funcionamento dessa nova escola da floresta. A Yorenka Ãtame vai funcionar inicialmente com oficinas de manejo de recursos naturais: de apicultura; de coleta de sementes para reflorestamento de áreas degradadas e oficinas de artes e ofícios. Em todas essas oficinas vão ocorrer estudos sobre sociedade e meio ambiente. A área de comunicação e informática também vai ser transversal a todas elas. Esperamos de todo coração, que a Yorenka Ãtame seja uma árvore muita frondosa, como uma grande samaúma, moradia de muitos espíritos de sabedoria, e que, sob sua copa, floresçam outras grandes árvores dessa nossa imensa floresta.
* Vera Olinda Sena, Educadora e representante da Comissão Pró-Índio do Acre. Página 20 - Papo de Índio, 15/07/2007
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